segunda-feira, outubro 17, 2016

12º Round - O texto integral da peça

Íntegra do texto 12º Round - Autor: Sérgio Roveri

Texto registrado na Fundação Biblioteca Nacional. Todos os direitos reservados. A reprodução ou utilização deste texto, parcial ou integralmente, estão proibidas por lei




12º ROUND


Texto de Sérgio Roveri – sroveri@terra.com.br



Projeto contemplado pelo Edital ProAc 34/2015 de Apoio à Criação Literária – Texto de Dramaturgia no Estado de São Paulo.



Três atores (dois homens e uma mulher) encontram-se em volta de um ringue de boxe. O ringue não precisa, necessariamente, ser demarcado por cordas. Seus limites podem ser imaginários. Dentro do ringue, dois boxeadores profissionais disputam uma luta cuja duração obedece rigorosamente o regulamento do esporte: 12 rounds com duração de três minutos cada um, e um intervalo de um minuto entre eles. A rigor, não há diálogos para os boxeadores, embora eles possam, de alguma maneira, utilizar de palavras para exprimir o cansaço da luta. A duração das cenas irá acompanhar o tempo dos rounds: 12 cenas de três minutos, com uma cena de um minuto entre elas. O importante é que, em todos os momentos em que os atores tenham fala, os boxeadores estejam lutando. Em relação aos atores, a divisão de personagens se dará da seguinte forma:
ATOR 1: O LUTADOR (Emile Griffith)
ATOR 2: O OPONENTE (Kid Paret) E DEMAIS PERSONAGENS MASCULINOS
ATRIZ: TODAS AS PERSONAGENS FEMININAS DA HISTÓRIA


PRIMEIRO ROUND – TRÊS MINUTOS
O Oponente encontra-se em coma, num leito de hospital.
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
OPONENTE (Kid Paret)
Minhas mãos são maltratadas. Não pelas lutas. Também por elas, mas não somente por elas. Minhas mãos são maltratadas pela cana. Pelo corte da cana. Meu corpo também é maltratado, um pouco pelos golpes, muito mais pelo sol. O sol das lavouras de cana, um sol que não existe em nenhum outro lugar do mundo, só nas lavouras de cana. Eu tentei me proteger. Dos golpes. Dos golpes dele e dos golpes do sol. Os dois me atingiram, os dois me atingiram além da conta e hoje eu tenho o corpo judiado. Eu abandonei as lavouras de cana... Mas ainda hoje eu acordo assustado... Não, ainda hoje, não. Eu não acordo mais. Quando eu acordava, quando eu ainda era capaz de acordar, eu acordava assustado com a lembrança do facão nas minhas mãos. Mesmo depois que eu troquei o facão pelas luvas do boxe, eu continuei a acordar assustado. Assustado e com as mãos maltratadas. Às vezes, eu imagino que... que o facão nunca saiu realmente das minhas mãos. Ele foi escondido pelas luvas, disfarçado debaixo delas, mas sempre pronto a ferir. Eu não falo inglês.
Já as mãos dele... as mãos dele são finas. Finas e macias. Mãos de quem nunca cortou cana, mãos de quem nunca soube, nem pelos livros, o que é o sol de um canavial e o que é um facão. As mãos dele são pequenas também. A primeira vez que eu vi aquelas mãos, eu pensei: ele não sobreviveria um dia em uma lavoura de cana. Como ele chegou até aqui com essas mãos, tão pequenas e macias? Alguém me disse que antes ele trabalhava com moda feminina. Com o quê? Com moda, chapéus, essas coisas de mulher. Se eu falasse inglês, eu diria: ora, com’on. Mas eu não falo inglês. E este é um mundo de homens.
Às vezes eu ouço algumas coisas, algumas coisas que eles falam ao lado da cama, algumas coisas que eles sussurram. Eu não entendo por que eles sussurram se todos estes equipamentos estão aí para confirmar que eu já não sou mais capaz de ouvir. Eles não precisariam sussurrar, então. Eles poderiam gritar. Eles sussurram que eu estou aqui há oito dias, do mesmo jeito e na mesma posição. Eles falam de um inchaço, de um inchaço gigante. Oito dias, então. E eles sussurram que talvez eu não vá muito longe. Talvez eu chegue ao nono dia, talvez eu morra no décimo dia. Eu sinto que será no décimo. Eu sinto que irei morrer no décimo dia. Sem falar uma única palavra de inglês e sem ter aberto um açougue em Miami. Meu sonho. Talvez eu ainda tenha tempo de aprender ao menos uma palavra de inglês. Mas o açougue... o açougue never.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
Atriz sobe ao ringue e dubla uma canção de Barbra Streisand. A canção é The Way We Were, tema do filme O Nosso Amor de Ontem, e será dublada a partir de sua estrofe final. É uma dublagem tosca, que poderia ser feita em uma boate de travestis. Em seu canto do ringue, o Lutador acompanha, de maneira ligeiramente afetada, a performance da atriz. Ele fecha os olhos e deixa-se conduzir pela música. Torna-se frágil e feminino.
GONGO
ATRIZ
Memories may be beautiful and yet
What's too painful to remember we simply choose to forget
So it's the laughter we will remember
Whenever we remember the way we were
The way we were
SEGUNDO ROUND – TRÊS MINUTOS
A música para de maneira seca. Lutador abandona a postura fragilizada.
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
ATRIZ ASSUME A PERSONAGEM DA MÃE DO LUTADOR.
Junioooor. Juniooor. Aqui em cima. A mamãe. A mamãe aqui em cima. Um pouco mais em cima hoje. Mostra para ele quem você é. Mostra para todos eles. Cale a boca deles. Junioooor.
Eu grito, sim. Se vocês estão incomodados, que mudem de lugar. Tem uns lugares vazios ali embaixo. Eu vou gritar. Eu vou gritar até o fim da luta, até ver meu filho sair carregado nos braços do público. Como um rei. Vejam só o corpo dele. Desde quando um homem comum tem um corpo daqueles? Ele é um rei. Ele é um Deus. Um Deus que vai calar a boca de todo mundo. Junioooooor. Arrebenta com ele, Junioooor. Arrebenta. Isso, desçam mesmo, vão embora mesmo. Meu Deus, como vocês são gordos. Gordos e molengas. Não, Junior, não. Protege o rosto, meu bebê. Não, Junior. Aiiiii.
É só por um tempo, meu filho. Você já é grandinho e vai saber se cuidar. E você tem de ser forte para dar o exemplo para os seus irmãos. Veja, veja aqui neste mapa. Onde é que nós estamos? Você já é bem grandinho, deve saber onde nós estamos. Então aponta para a mamãe. Isso, Junior, muito bem, meu amor. Nós estamos aqui. Você, a mamãe, os seus irmãos, todo mundo que você conhece está aqui. E agora a mamãe vai mostrar para onde ela está indo. A mamãe está indo para este outro pontinho aqui. Viu como é pertinho? E esta parte azul é o mar. Mas é só um pouquinho de mar que vai separar a gente. Coloca o seu dedinho aí. Está vendo? O mar que vai separar a gente é menor que o seu dedinho. Quando você ficar com saudades da mamãe, você se lembra disso: que a gente está longe só por um dedinho. E a mamãe vai fazer a mesma coisa do lado de lá. Toda noite, quando eu me deitar, eu vou olhar para o meu dedinho... ah, mas o meu dedinho é gordo, cabe muito mais mar no meu dedinho... então eu vou colocar um pedacinho de unha no mapa e vou dizer que você está longe de mim só um tiquinho de unha. Não vai ser mais fácil se a gente pensar assim? E antes de o seu dedinho crescer, eu já vou estar de volta. Eles vão cuidar bem de você, eles prometeram. Se eles não cuidarem, sabe o que a mamãe vai fazer? A mamãe vai dar um pulão por cima deste pedacinho de mar para vir te proteger. Então escreve. Vamos lá. H...A...I... Não, um T, isso é não um T, Emile, isso é um... nem sei o que é isso. Faz um T. Isso, isso, meu amor. E agora um I. Pronto. Haiti. É para lá que a mamãe está indo.
Desculpa, Junior, eu pensei que fosse mais fácil voltar. Quando a gente olha de perto, o mar é bem maior do que o nosso dedinho. Eles prometeram que iam cuidar bem de você. Só por isso eu fui. Eles prometeram. Quem fez isso com você?
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
Em um canto do ringue, lutador faz um delicado arranjo de flores para enfeitar um chapéu feminino. É um trabalho caprichado, preciso, obra de um artesão. Depois de pronto, coloca o chapéu na cabeça da mulher e faz os últimos acertos. Observa a mulher à distância, veste as luvas de boxe e volta para o seu canto do ringue.
TERCEIRO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
LUTADOR
Nunca ninguém me perguntou qual era o meu mês predileto. Deve ser o tipo de pergunta que não se faz a alguém como eu. Ou é o tipo de pergunta que não se faz a alguém que faz o que eu faço, ou que vive do que eu vivo. É provável que as pessoas esperem que eu diga outras coisas. Se alguém, algum dia, tivesse me perguntado qual era meu mês predileto, eu teria respondido abril. Talvez não seja o mês favorito de ninguém. Desconfio que as pessoas diriam dezembro, setembro quem sabe.. Mas dificilmente abril. Abril é quando eu volto a acreditar na possibilidade de um sol, na possibilidade de uma luz. Abril é quando Nova York, a cidade em que eu vivo agora, tenta se assemelhar à cidade em que eu nasci. Eu sei que é um plano que já nasceu frustrado, pois há um mundo a separar a cidade onde eu vivo da cidade em que eu nasci, um mundo de árvores e ondas, de areias e corpos, mas a cada abril eu renovo as esperanças de que nunca mais haverá neve em minha vida. Ainda que eu saiba que nada separe mais a cidade onde eu vivo agora da cidade que eu nasci do que...do que eu. Ainda assim, abril sempre foi meu mês favorito. Já não é mais.
Da porta do vestiário até a balança eram nove passos. Eu sei por que já tinha contado outras vezes, esta é uma das minhas manias. Embora eu saiba que todos os ringues do mundo têm as mesmas medidas, ainda assim eu gosto de contar os passos de um canto a outro. Eu acho que quem faz isso, no fundo, está atrás de algumas certezas. Entre o sexto e o sétimo passo, eu ouvi a palavra. “Maricón”. Parei. Eu não falo espanhol. Mas sei o significado de algumas poucas palavras, principalmente daquelas que eu já ouvi mais de uma vez na vida. Olhei para o meu técnico e ele fez um gesto curto e seco, algo que poderia ser entendido como: não dê bola para isso. Dei mais dois passos, os dois passos que faltavam para que eu finalmente assentasse os pés sobre a balança, quando eu voltei a ouvir a palavra. “Maricón”. Se o ódio e a indignação pudessem ser medidos em gramas, naquele momento eu estaria acima do peso. Então vieram as outras palavras: “Mañana voy a matar a usted y su marido”. Quantos quilos a balança marca? Quantas são as palavras que eu não entendo? É o meu peso que esta balança aponta? É de mim que estas palavras falam? E em que momento tudo isso se confunde? Olhei para o meu técnico novamente e nenhuma reação em seu rosto. Hoje eu diria que ele estava mais estático que os ponteiros à minha frente. Desci da balança sem outra intenção a não ser a de dar os nove passos que me levariam para fora do vestiário. Desta vez, foi entre o quarto e quinto passo. Ele afinou a voz e fez alguma coisa parecida com isso: “Hummmm....” e colocou a mão na minha bunda. No meu ombro, a mão do técnico. Na minha bunda, a dele. Por uma questão de hábito, obedeci a mão do técnico e saí do vestiário. O que ele disse lá dentro? Esquece, ele só quis te provocar. O que ele disse lá dentro? Ele disse... ele disse que amanhã, na luta...que amanhã na luta ele vai matar você e o seu marido. Eu não entendo. Eu nem sequer tenho um marido.

GONGO

INTERVALO DE UM MINUTO

ATRIZ ASSUME O PAPEL DA FALSA NAMORADA DE GRIFFITH

Eles me pediram para que eu fizesse algumas fotos com ele, algumas poses no banco de um parque. Eu deveria apenas segurar as mãos dele, encostar minha cabeça em seu ombro, olhar bem nos olhos dele e fingir algum sentimento. Eu disse que não me sentia muito à vontade para fazer isso, mas que se fosse para ajudar, eu aceitaria. Eu não gostei quando eles usaram a palavra fingir. Finja que você sente alguma coisa por ele. Eu não preciso fingir, eu sempre gostei muito dele, mas não sei se é exatamente isso que vocês querem. Eu sempre senti que ele precisava de alguma coisa, embora eu não soubesse dizer o quê. Mas sempre tive a certeza de que eu era incapaz de dar esta coisa a ele. Talvez por isso ele passasse tanto tempo longe de mim. Talvez por isso ele me trocasse por outras companhias que... Escutem: por que vocês querem tudo isso? Estas fotos todas nos jornais. Porque, eles disseram, porque as pessoas precisam pensar que tudo que andam dizendo a respeito dele é mentira. Porque as pessoas precisam acreditar que ele é normal. Mas ele é normal. Nós sabemos, mas não para um lutador de boxe.

(Flashes de máquina fotográfica)

GONGO

QUARTO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
OPONENTE AGORA NO PAPEL DE UM REPÓRTER
Pois foi exatamente da maneira que eu estou falando. Foi logo depois da luta. Ele estava suado ainda, com aquele corpão todo brilhando de suor, parecia um homem feito de prata, e com o mesmo calção que usou para lutar. Ele só teve tempo de tirar as luvas, parecia que estava com tanta pressa, com tanta vontade de fazer aquilo que estava fazendo ali, no banco do vestiário, que se fosse possível fazer aquilo de luvas, ele teria feito. Quando eu lembro, é difícil dizer em que momento ele exibiu mais garra e mais talento: se no ringue ou se ali, no banco daquele vestiário gelado. Pois foi assim. Se você não acredita, tudo bem, eu paro de contar. Não saiu nos jornais porque os jornais não dão uma merda dessas. Mas tinha tanto repórter ali, encostado naquelas paredes de azulejo, que se cada um de nós pudesse publicar o que viu naqueles segundos, ah, eu penso que o mundo ia virar de cabeça para baixo. O cara é o campeão mundial, acaba de deixar o outro no chinelo, é aplaudido, aplaudido não, ovacionado, ovacionado por um estádio lotado, todas as tevês do mundo mostrando como o cara é demolidor, e então ele sai do ringue, corre até o vestiário, agarra o namorado, é namorado que fala?, fica assim, ó, boca com boca, com o suor ainda escorrendo pelas costas, quando a gente entra e vê tudo. Não, não tenho nenhuma ideia fixa com suor... é que aquilo me marcou bastante, o suor...
Você queria que a gente dissesse assim: hei, campeão, você vai ficar muito tempo aí beijando seu namorado? A gente queria te entrevistar sobre... sobre... sobre a luta, claro. Alguns jornalistas ficaram olhando para o chão, outros para o teto e alguns poucos, eu entre eles, encarando a cena. Parecia que aquilo não ia ter fim. Acho que se cada um ali tivesse flagrado os próprios pais na cama não teria ficado tão sem ação. O cara tinha acabado de ganhar um título. Aquele mesmo braço que o juiz tinha erguido cinco minutos antes, agora estava ali, alisando a coxa do namorado. Depois chegaram os técnicos, alguns amigos dele, que ainda conseguiram ver o finalzinho do... do... como eu chamo aquilo, do romance? Um dos técnicos olhou para a gente e disse: senhores, ele já vai atender vocês. É só o tempo de ele tomar banho. Mas daí, cara, daí veio a melhor parte: ele parou com os beijos, ajeitou o calção, se levantou, abriu aquele sorrisão branco e veio em nossa direção. Porque isso eu tenho de admitir: o filhadaputa tem um sorriso de ganhar concurso. Olhou para nós, como se não tivesse acontecido nada, e falou: senhores, estou à disposição para as perguntas.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
Enquanto os boxeadores se recuperam, cada um de seu lado do ringue, surge em off a voz de Frank Sinatra, cantando um de seus maiores sucessos, Let me try again. A gravação, que limita-se a apenas um minuto, vai privilegiar apenas os versos iniciais da canção:
I know I said that I was leaving
But I just couldn't say good-bye
It was only self-deceiving
To walk away from someone who
Means everything in life to you
You learn from every lonely day
I've learned and I've come back to stay
Let me try again
Let me try again
Think of all we had before
Let me try once more
We can have it all,
You and I again
Just forgive me,
Or I'll die
Please let me try again
GONGO

QUINTO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
LUTADOR
Que golpe deve ser usado para nocautear um fantasma? Se ele estiver longe, e é isso que a gente espera dos fantasmas, eu usaria o jab. Sei que não é um golpe muito potente, mas ainda não inventaram nada melhor para exaurir o adversário, para quebrar sua resistência. O problema é que existe uma coisa muito irritante em relação aos fantasmas: eles são incansáveis. E você nunca é capaz de prever em qual lado do ringue eles vão aparecer. Há um tipo de fantasma, que na minha opinião é o pior tipo, que costuma aparecer também fora dos ringues.
Se o fantasma estiver próximo, e infelizmente é o que costuma ocorrer na maioria dos casos, ou se você quiser derrubar suas defesas na hora, o jeito é recorrer a um direto, mas sem se esquecer, é claro, de usar a mão na qual você tem mais força – a minha, por exemplo, é a direita. Se o fantasma ainda não estiver dominado, é sempre possível empregar uma variedade de golpes na tentativa de derrotá-lo: o cruzado, o gancho, o uppercut. Eu vou contar um segredo: eu usei todos estes golpes, de todas as formas e em todas as combinações possíveis, e nunca cheguei sequer perto de derrotar o fantasma que eu fiz despertar na décima noite, na noite em que ele finalmente morreu. O quanto de mim morreu junto, naquela noite ainda fria de abril, é uma conta que não fui capaz de concluir.
Se ele queria tanto viver em Miami, comprar um açougue por lá, por que diabos seu fantasma não sai das ruas de Nova York? Por que tem de se esconder atrás de cada banca de jornal, atrás de cada tapume, de cada carro estacionado? Por que tem de me assustar mesmo quando o sol corre alto no céu? Porém, como é típico dos fantasmas, o dele também tem uma queda por lugares sem luz: pelos cinemas, pelos teatros, por todos os quartos em que eu tentei dormir desde aquela noite de abril. O fantasma dele também se sente em casa nos vestiários, nos cantos de ringues, nas salas de musculação. É um fantasma que, desconfio, ainda se preocupa em manter a forma. Mas em nenhum desses lugares o fantasma dele encontrou melhor guarida do que nos espelhos, em qualquer espelho. Enquanto eu faço a barba debaixo do chuveiro, o sangue que escorre do meu rosto cortado desce pelo meu tronco e pernas e acumula-se em pequenas poças ao redor dos meus pés. Esta é a minha derrota: nunca mais conseguir encarar um espelho – e a gilete então tropeça cega pela minha face ensaboada enquanto eu olho para a parede. Das paredes, eu desconfio, o fantasma dele não gosta.
Eu fico muito grato, senhor Sinatra. Eu admiro muito o senhor como cantor. Como cantor e amigo, mas eu já tenho empresário e pretendo continuar com ele.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ ENCARA O PÚBLICO E FAZ UM DEPOIMENTO
Nos anos 60, era crime ser homossexual nos Estados Unidos. As punições previstas para os homossexuais em território americano eram tão severas quanto as empregadas na União Soviética, Cuba e Alemanha Oriental – os maiores inimigos da América na época. A palavra “homossexual” não podia ser publicada na imprensa. Por isso, quando queriam se referir a ele de maneira pejorativa, os jornais costumavam dizer que havia algo de “diferente” naquele jovem campeão que falava fino, que queria fazer chapéus e gostava de dançar em um tipo de bar muito específico. O que os jornais gostariam de dizer, mas não podiam, era que ele adorava frequentar bares e boates gays da região do Times Square, em Nova York. Porém, estes lugares não podiam ser chamados abertamente assim. A saída que eles encontraram foi promover shows de fachada – Barbra Streisand começou sua carreira cantando em um desses bares. Ele a admirava muito e deixava isso claro na potência dos seus aplausos. Mas ela não enxergava esta admiração, porque não passava de uma garota judia e tímida que não tinha coragem de encarar a plateia.
GONGO
SEXTO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
OPONENTE AGORA NO PAPEL DE MATTHEW, NAMORADO DE GRIFFITH
Você vai querer que eu te chame de papai? Não ria. Estou perguntando isso porque os meninos da minha idade, quando arrumam um namorado mais velho, tipo assim, como você, eles começam a chamar o cara de papai, de papi, de paizinho, uns nomes assim. Eu acho um horror, mas alguns caras gostam. Então, se algum dia você quiser... O foda é que... é que... se eu chamar você de papai, eu vou acabar me lembrando de algumas coisas que eu não quero lembrar. Você nem é assim tão velho, na verdade, nem é quase velho. Está mais para novo. Mas é que você é grande. Uma vez, eu vi num livro a figura de um albatroz. Você conhece este pássaro? Ele é assim, muito largo. Da ponta de uma asa até a ponta da outra, não sei, parece que cabe um mundo. Eu acho que você tem ombros de albatroz. No fundo você é até novo. É que todo mundo trata você como se você fosse um cara velho, por isso eu quis saber se você quer ser chamado de papai. É que você é meio que chefe de todo mundo, não é?
A outra coisa dos meus amigos é que eles... bom, quando eu contei pra eles que a gente estava junto, é oóóóbvio que eles não acreditaram. Eu já sabia que eles não iam botar fé, mas você acha que eu não iria contar? Você vive aparecendo na televisão, nos jornais... O último cara com quem eu fiquei fazia uns bicos de limpar neve, cara. Daí aparece você e... como eu iria ficar quieto? Só que eu falei pra eles ficarem de boca fechada, mas você sabe como elas são, né? Elas, as bichinhas. Elas queriam te conhecer, só que eu não sou louco de fazer isso. Eu sei como elas são... elas apunhalam pelas costas. Era só eu levantar pra ir no banheiro que, quando eu voltasse, uma delas já tinha pulado no seu colo. Uma, não, várias. Essas bichinhas falam que você é homem demais para um cara só, ainda mais um carinha assim como eu, quase raquítico...
O que eu queria falar deles, na verdade é... bom, na verdade não é bem deles que eu queria falar, era mais da gente mesmo. Assim, um pouco deles e um pouco da gente. É que eu não contei pra eles que a gente ainda não...Na cabeça deles, eu sou o gayzinho mais bem comido de Nova York, eles nem sacam que... a gente tá mais pra irmão. Eu sei que eles não têm nada a ver com isso, eles não precisam saber de porra nenhuma da gente. Mas é que eu penso: caralho, isso aqui é os anos 60, todo mundo come todo mundo... Até na rua. Eu sei, eu sei... Você já me explicou. É foda, mas eu respeito.
Viu... hei, olha pra mim. Em dezembro, quando eu fizer 18 anos, à meia-noite e um do meu aniversário de 18 anos, você promete que finalmente a gente vai... Mas à meia-noite e um, promete? Daí eu te chamo de papai... Em dezembro... Papai Noel. Cara... eu só vou esperar porque eu te amo.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ NO PAPEL DE UMA TELESPECTADORA NA NOITE DA LUTA ENTRE GRIFFITH E PARET
Mas isso é filme ou é de verdade? Eu fiz uma pergunta. É filme ou é de verdade? Deixa esta cerveja e me fala. Isso é verdade? O cara está... o que é isso? O cara está... ai... o cara está matando o outro e você deixa o menino assistir. Depois ele não dorme de noite. Eu tô achando que é de verdade. Alô, alô, Corina, você está com a tevê ligada? Então vai lá na sala e olha. Tira esta cerveja do braço do sofá, não está vendo que tá manchando tudo? Oi, Corina, é o que eu acabei de falar aqui em casa... é de verdade, sim. Ao vivo! A tevê agora mostra um... um assassinato, como é que você chama isso? Esporte é que não é. É ao vivo, Corina, você tá louca? É ao vivo. Ele...ele...meu Deus, ele matou o outro? Não é filme, Corina, não seja burra. Ele matou o outro? Já pra cama, moleque. E você, você desliga esta merda.
SÉTIMO  ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
OPONENTE AGORA NO PAPEL DE KID PARET
Não importava se eu ganhava ou perdia: a minha cabeça sempre me matou. O médico uma vez me falou que, se não era das pancadas, devia ser de todo aquele sol na época do canavial. Faz quase dez anos que eu parei de cortar cana. Por que foi doer só agora? Então deve ser das pancadas. Dói mais depois das lutas, quando eu tomo banho e volto para casa. Esta é a hora que dói mais, quando eu me deito. Daí explode de dor. Parece que eu ainda estou lutando. Parece que eu ainda estou apanhando. E mesmo quando eu bato, sinto a dor de quem apanha. A minha mulher diz que eu preciso ver isso. Que, se for o caso, é melhor eu parar com as lutas. Ela tem medo que eu morra e deixe ela com um filho pronto e um outro vindo na barriga. Eu nunca ouvi falar de ninguém que morreu de dor de cabeça. Só de dor de cabeça. E, se no outro dia já melhora, é porque não deve ser muito grave. A diferença entre as outras dores de cabeça e esta de agora, é que agora eu ouço vozes. Tirando a voz da minha mulher, as outras eu não conheço. Pode bater, maricón. Pode bater à vontade, que amanhã eu já vou estar bom. Amanhã eu vou estar nos trinques, e você vai continuar sendo um maricón, porque isso aí não tem cura.
Que porra é essa de inchaço que eles continuam falando? Uma vez, no canavial, eu não sei por que eu não paro de pensar neste canavial, aquilo já ficou para trás, porra. Uma vez no canavial uma cascavel picou a minha perna. Se estas vozes estivessem comigo lá, naquela hora, elas iam saber o que é inchaço. Aquilo sim era inchaço... Porque qualquer criança, qualquer criança mesmo que seja burra, sabe que inchaço a gente enxerga. Eu não tinha nem 14 anos, mas aquela cobra me ensinou o que era nocaute. Traição. Golpe baixo. Eu aprendi tudo com a cascavel. Depois eu só fui aprimorando, porque a luta é igualzinha uma cascavel: se você sai vivo, você sai mais forte. Mas hoje esta dor está foda. O pior é que eu estou com uma impressão, não posso perguntar isso para ninguém, mas eu estou com uma impressão que nunca amanhece aqui. Parece que faz um tempão que eu deitei e nunca amanhece.
Eu preciso falar uma coisa para a minha mulher. Eu sei que ela não vai gostar, mas eu preciso falar. Vem cá, presta atenção no que eu vou dizer: se acontecer alguma coisa comigo, alguma coisa, não interessa o quê, pode ser qualquer coisa, mas se acontecer, eu não quero voltar para lá, você tá entendendo? Para aquele canavial eu não volto, nem morto. Está me ouvindo bem? Nem morto.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ RETOMA O PAPEL DA FALSA NAMORADA DE GRIFFITH
Eu fiquei surpresa quando vi. Vocês não me disseram que iam usar a palavra noiva. E agora os jornais dizem que nessas fotos ele aparece acompanhado da noiva. As fotos estão ótimas, não é disso que estou reclamando. Eu não me lembro de ter ficado tão bela, talvez bela seja um exagero, mas eu não me lembro de ter saído tão bem em uma foto, eu logo vi que o rapaz que vocês contrataram era profissional. O jeito dele de me dizer como eu deveria olhar, como eu deveria me sentar, o que eu deveria fazer com os braços. Eu passei a desconfiar que as estrelas de cinema talvez nem sejam tão bonitas, elas só precisam ser bem conduzidas nas fotos. O problema é que vocês não me disseram que iriam usar a palavra noiva. Eu o quero muito bem, mas isso está longe de ser amor. Eu me vejo mais como uma garota disposta a fazer qualquer coisa para ajudar um amigo em apuros. Eu sempre quis que ele fosse mais que um amigo, mas, vocês sabem, ele nunca permitiu. Ele até se esforçou, mas no fundo nunca gostou desta ideia.
OITAVO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
LUTADOR
O que foi que eu fiz?
O que foi que eu acabei de fazer?
Hei, garoto, olha pra mim. Sai das cordas, garoto.
Por que este silêncio? Agora há pouco era um grito só, o ginásio inteiro era um grito. Por que isso agora? Essas caras.
Garoto, olha para mim. É só mais uma luta.
O que foi que eu fiz?
Quanto tempo durou isso? Na minha cabeça foi só um flash...
Esperem um pouco, ele é um campeão também. Ele vai reagir.
O que foi que eu fiz?
Para onde vocês vão levar ele? É melhor eu ir junto, no caso de alguém perguntar.
Por que ninguém me impediu? Este gongo que toca tanto. Não tocou desta vez?
É só uma pergunta: o que foi que eu fiz?
Juiz, o senhor pode me dizer o que foi que eu fiz?
Eu só parei de ir ao hospital porque, nos primeiros dias, não me deixavam nem chegar perto do quarto; depois, me impediram até de cruzar a recepção. Eu teria ido todos os dias, se me deixassem. Teria ido todos os dez dias que ele ficou lá, teria ficado ao lado da cama dele todos os dez dias. Até na mão dele eu ia segurar se fosse preciso. Mas não deixaram. Na cabeça deles, eu precisava de uma punição. Todos sabiam que era só uma luta e que às vezes as lutas não acabam bem. Mas, naqueles dias, pensar assim não parecia a coisa certa. Ele é um homem jovem, que tem um filho pequeno e uma mulher grávida. Quando se olha por este lado, ninguém consegue dizer que é só uma luta. Eu mesmo me esforço, mas na maioria das vezes não consigo. A única coisa que eles conseguem dizer é que eu matei o cara. E a pior parte desta história é que eu estou começando a acreditar nisso. E ainda há as cartas, as dezenas de cartas que me acusam de assassino e matador sem coração.
Enquanto ele está sendo velado, eu leio as cartas. Enquanto ele está sendo enterrado, eu leio as cartas. A mãe dele veio de Cuba para o enterro e eu gostaria de perguntar para ela como é lá, como é a terra dela, como é o lugar onde ele nasceu. Porque eu acho que deve lembrar o lugar em que eu nasci. E porque eu acho que nos dois, eu e ele, no fundo não passamos de dois garotos que se afastaram demais do sol. Eu gostaria de perguntar para ela se ele sabia ir sozinho até os canaviais ou se ela tinha de ir com ele, pelo menos no começo, pelo menos até ele aprender o caminho. Eu gostaria de perguntar para ela se ela acredita que, lá onde ele se encontra agora, ele seria capaz de me perdoar. Eu gostaria de perguntar para ela se ele seria, lá onde ele se encontra agora, pelo menos capaz de compreender que foi só uma luta e que às vezes as lutas não acabam bem.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ VOLTA A ASSUMIR O PAPEL DE MÃE DE GRIFFITH
Ah, Junior, eu não sei responder isso. Quem tem de saber isso é você, mas se você não sabe, como é que eu vou saber? Eu penso que as coisas iam ser mais fáceis se você fosse igual os seus irmãos, mas eu sou antiga para essas coisas, eu posso estar falando um monte de besteira. Quando eu olho para você e depois olho para os seus irmãos, eu concordo com você: a vida deles é mais fácil que a sua. Mas eu acho que é porque você sustenta eles, e não porque você é assim... diferente, de um outro jeito. A vida ia ser dura para eles também se eles tivessem de trabalhar. Eu ainda acho que você não encontrou a mulher certa, este é o problema. Agora mesmo: uma dançarina de cabaré. Que homem vai ser feliz do lado de uma dançarina de cabaré? Acho difícil. Mas é o que eu estou dizendo: eu sou antiga. Vai ver que é uma coisa de Deus: se você ainda não encontrou a mulher certa, é porque a mulher certa para você sou eu.
GONGO
NONO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
OPONENTE, AGORA NO PAPEL DE UM NARRADOR
As coisas nunca mais foram as mesmas depois daquela noite. O boxe nunca mais foi o mesmo. E ele, acima de tudo ele, nunca mais foi o mesmo depois daquela noite. Pelos 15 anos seguintes, até guardar definitivamente as luvas, ele vestiu o robe de boxeador outras 80 vezes, mas só conseguiu 12 nocautes. Das últimas 23 lutas da carreira, ganhou apenas nove. Ele se tornou – como é possível dizer isso no mundo do esporte, não, no mundo do esporte, não, no mundo do boxe– ele se tornou um cavalheiro, um homem dócil e gentil que parecia muito mais preocupado em preservar a integridade física dos seus oponentes do que a obrigá-los a pedir água. Eu tenho medo, ele passou a dizer. Ele tinha 24 anos, era o campeão mundial dos pesos-pesados e estava com medo. Eu fico apavorado com a ideia de voltar a machucar alguém, apavorado com a ideia de novamente matar um homem. Se para isso eu preciso deixar de ser o lutador que eu sempre fui, eu deixarei de ser. Não era à toa que ele andava apavorado: as pessoas cuspiam nele quando ele saía às ruas.
As coisas nunca mais foram as mesmas depois daquela noite. A rede de televisão ABC, que transmitiu a luta ao vivo, na semana seguinte baniu o boxe da programação. Outras emissoras espalhadas pelo país fizeram o mesmo. Você ouviu isso, Corina? Vão parar de passar aquela porcaria na televisão. Bem feito. Corina...o que que os nossos maridos vão fazer agora, nas noites de sábado?
As coisas nunca mais foram as mesmas depois daquela noite. O juiz que atuou na disputa nunca mais apitou coisa alguma. “Hei, você não é aquele juiz? Cara, por que você não parou aquela carnificina?” Eu tentei, mas você assistiu à luta até o fim? Ele golpeou o outro 17 vezes em cinco segundos. Aquilo não era um braço humano, aquilo era um pistão”.
As coisas nunca mais foram as mesmas depois daquela noite. E ele? Ele tentou parar, ele até pensou em desistir, mas ele já não sabia mais fazer outra coisa na vida. A época de enfeitar chapéus de mulher havia ficado para trás”.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ E OPONENTE SE REVEZAM NO PAPEL DE APRESENTADORES DE UM TELEJORNAL
ATRIZ
O boxeador aposentado Emile Griffith, de 54 anos, foi violentamente espancado na tarde de ontem por cinco adolescentes armados com tacos de beisebol.
OPONENTE
A agressão ao boxeador ocorreu em frente a um bar chamado Hombre, conhecido reduto homossexual na região da Times Square.
ATRIZ
Os golpes acertaram principalmente a cabeça e as costas do boxeador. O hospital informou que seu estado é considerado muito grave.
OPONENTE
Griffith tornou-se famoso ao disputar o título mundial de 1962 contra o boxeador cubano Kit Paret.
ATRIZ
No 12º round daquela luta, Griffith desferiu uma série de golpes no cubano, que deixou o ringue em estado de coma e morreu no hospital dez dias depois.
OPONENTE
A polícia de Nova York informou que ainda não está claro se a agressão de ontem foi motivada por homofobia
GONGO
DÉCIMO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
LUTADOR
De uns tempos para cá, as pessoas andam um pouco mais generosas comigo. Elas perdoam alguns lapsos de memória, alguns brancos, algumas confusões que eu faço, uns nomes que eu troco ou apago. Elas perdoam meu olhar que se fixa em um ponto do quarto onde não há nada para ver, e parecem perdoar as lágrimas que escapam diante deste vazio. Elas compreendem que por 17 anos eu levei muitas pancadas na cabeça e isso deve ter tirado algum parafuso do lugar, talvez tenha desarrumado toda a caixa de ferramentas. Algumas pessoas querem me levar para passear, e eu raramente vou, outras querem me visitar em casa e não escondem o quanto ficam desapontadas ao descobrir que eu vivo num apartamento de quarto e sala e que preciso de um cuidador 24 horas por dia, porque as coisas caem das minhas mãos, as coisas caem da minha boca e quase todo dia eu caio de mim mesmo. Depois elas novamente voltam a demonstrar ternura quando ficam sabendo que o cuidador é meu namorado e, ao mesmo tempo, meu filho – um garoto que, depois que deixei os ringues, eu adotei em um centro para menores infratores que hoje se transformou num homem grande e gordo, mas que continua a me olhar como se eu ainda fosse campeão de alguma coisa.
O que vocês gostariam que eu tivesse feito além de me esconder? Eram os anos 60, era o boxe, e era eu, um garoto negro. E, naqueles dias, não levava muito tempo para um garoto negro, um garoto negro e gay, descobrir que as maiores batalhas da sua vida teriam de ser travadas longe dos ringues. Eu tinha dois amigos, tão negros e tão gays como eu, e quando nós chegávamos nas boates, os porteiros diziam: chegaram Os Três Mosqueteiros. Um dia, um deles me disse que a gente deveria sentir orgulho, porque naqueles anos ser gay era motivo de cadeia, e a gente sempre conseguiu passar longe do xadrez.
Eu sempre gostei de homens e mulheres, mas não gostava das palavras homossexual, viado e bicha. Eu não tenho certeza do que eu sou, porque eu amei homens e mulheres do mesmo jeito e não queria ser lembrado só por isso. E nem por ter batido num homem até que ele morresse.
Se eu pudesse escolher, eu gostaria de ser lembrado como um cara que foi cinco vezes campeão do mundo. Eu acho que está na hora do meu remédio.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
OPONENTE ASSUME O PAPEL DE UM FANTASMA
O meu fantasma é teimoso, ele quer assombrar você até o último dos seus dias, até que seu braço finalmente caia sem vida ao lado desta cama que me parece tão pequena para o seu tamanho. Eu sei que é cruel continuar desafiando um homem tão debilitado, tão envelhecido, tão distante de qualquer glória. Eu vou confessar uma coisa, mesmo sabendo que daqui a cinco minutos você não vai se lembrar mais dela: eu me sinto muito mais cansado do que você. Eu gostaria de ter parado há muito mais tempo, nem na época do canavial o cansaço foi tão gigante. Eu não quero que a eternidade seja isso. Eu já passei tempo demais aqui. Mas enquanto você não jogar a toalha, eu não vou compreender que a nossa luta terminou.
GONGO
DÉCIMO PRIMEIRO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a disputa)
LUTADOR
Eu matei um homem e não fui preso. Eu estava com muita raiva dele, sim, muita raiva, porque ele tinha me tratado como lixo, me humilhado de um jeito terrível. Ele me chamou de bicha na frente de todo mundo. E não foi só por ter me chamado de bicha, o que já não era pouco naqueles dias, mas a maneira como ele me ridicularizou, como me fez de idiota, como ele me sacaneou em uma sala cheia de gente que me respeitava. Mas apesar de eu estar puto com ele, extremamente puto, eu nunca quis matá-lo. Este pensamento nunca chegou a passar pela minha cabeça, mas infelizmente aconteceu. Nós fazemos parte de um negócio cruel. Ainda hoje, confesso, eu me sentiria ofendido se alguém me chamasse de bicha daquela maneira tão ofensiva, ninguém precisa ser tratado assim. Mas talvez hoje eu não perdesse mais a cabeça por causa disso, pelo menos não da maneira que eu perdi lá atrás.
Depois de tantos anos, eu vejo como as coisas continuam estranhas. Eu mato um homem e a maioria das pessoas, de certa forma, compreende isso e até me perdoa. E, então, eu amo um homem e para a maioria das pessoas isso é um pecado mortal. Amar um homem faz de mim um cara do mal, um demônio. Eu nunca fui preso por isso também, por amar um homem, mas o fato de nunca ter podido amar um homem livremente fez da minha vida numa prisão perpétua.
Um dia eu vi um cartaz com a minha foto e uma legenda, em letras maiores do que a própria foto, que dizia que eu era o campeão mundial gay de boxe. Depois, um pouco abaixo, umas letras menores falavam o seguinte: ele disputou mais campeonatos mundiais do que qualquer outro boxeador na história”. Ok, está tudo certo. Mas por que eles precisam fazer tanto estardalhaço com este lance de ser gay? Por que eles têm de anunciar isso em letras grandes a toda hora? Não podia ser tudo mais simples? Eu não quero me sentir uma aberração. Eu sei que as coisas são assim, mas eu queria que elas fossem mais simples.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ ASSUME O PAPEL DE UMA COMPRADORA DE CHAPÉU
Eu ouvi dizer que nunca houve um lutador como ele, um homem tão fino e educado tanto dentro quanto fora do ringue. Me falaram que ele se importa com os adversários, que pergunta se eles estão bem, se querem continuar a luta ou se é melhor parar por ali mesmo, antes que alguém saia machucado da história.  Nada disso me interessa, porque eu odeio boxe, nunca vi nenhuma luta e pretendo morrer sem ver. O que eu sei é que nunca houve alguém que fizesse chapéus tão bonitos. Quando eu vi um deles numa vitrine, eu perguntei para a vendedora quem tinha feito aquela pequena joia. A vendedora mandou chamar e ele veio, lá do fundo da loja, ajeitando um arranjo de flores. Achei que era alguma piada. Rapaz, eu disse, não sei se você vai continuar neste negócio, mas você tem mãos de fada. Qualquer coisa que você fizer com as mãos, vai ser bem feito. Sem falar que ele era o negro mais lindo que eu já tinha visto na vida.
GONGO
DÉCIMO SEGUNDO ROUND
Os lutadores tiram as luvas e sentam-se cada um em um canto do ringue. Atriz e oponente caminham em direção ao centro do ringue. Imagens de Emile Griffith, em diversas fases de sua carreira, são projetadas em um telão sobre o palco. Cenas da sua vida pessoal, dos treinos, dos prêmios e do fatídico combate que ele travou contra o cubano Benny Kid Paret. As imagens finais mostram a luta realizada em abril de 1962, que provocou a morte do cubano. A imagem congela.
LUTADOR
Ontem eu tive a melhor experiência da minha vida. Eu não subi num ringue, não lutei e nem ganhei nenhum título. Mas ontem eu conquistei a minha maior vitória. Eu desfilei na Parada do Orgulho Gay de Nova York, eu e meu namorado. E foi a melhor experiência que eu já tive porque, pela primeira vez na minha vida, eu me vi cercado de pessoas iguais a mim. Eu não estava mais sozinho. Tudo aquilo que eu fui obrigado a esconder, ou que me obrigaram a esconder, os meus fantasmas, a minha alma amedrontada, os meus porões, a tudo isso eu finalmente pude apresentar o sol das ruas de Nova York. Eu encontrei um amigo que eu não via há tanto tempo e perguntei para ele que horas eram. Ele me respondeu que eram três da tarde. Então eu o beijei, eu o beijei e disse: nós podemos nos beijar na rua às três da tarde e pelo menos hoje, pelo menos aqui, ninguém vai nos bater por isso. No meio daquela multidão, eu me perguntei se as coisas teriam sido diferentes se eu tivesse assumido há 50 anos. Eu não sei. As coisas são assim. Elas são como são e nada mais tinha importância. Porque eu não estava mais sozinho.


FIM DA LUTA

terça-feira, outubro 11, 2016

Emile Griffith, uma luta nos palcos

Eu nunca tinha ouvido falar no boxeador norte-americano Emile Griffith até o dia 24 de julho de 2013, uma quarta-feira, quando, ao ler o caderno de Esportes do jornal Folha de S. Paulo, me surpreendi com o seguinte título: “Primeiro Campeão a Assumir a Bissexualidade Morre nos EUA”. Logo abaixo do título, uma pequena linha explicativa: “Emile Griffith, 75 anos, levou à morte rival que o havia chamado de homossexual”. Li a matéria com uma curiosidade incomum e, ao final do texto, que ocupava um quarto de página, já tinha decidido que aquela história, a história do boxeador pobre e negro, nascido em uma ilha do Caribe, cinco vezes campeão mundial e que viu seu mundo virar de ponta cabeça numa noite de abril de 1962, quando seus golpes provocaram a morte do boxeador cubano Kid Paret, que o havia chamado de bicha na véspera do combate, seria meu próximo projeto teatral. Uma rápida pesquisa na internet, naquela mesma quarta-feira, me revelou que a morte de Griffith era destaque nos principais jornais dos Estados Unidos e Inglaterra – países em que ele disputou títulos mundiais com mais frequência. Sua trajetória atribulada, suas vitórias e derrotas (dentro e fora do ringue) e o preconceito do qual foi vítima durante toda a vida por ser homossexual no universo assustadoramente homofóbico do boxe ocupavam páginas e páginas na imprensa estrangeira, em reportagens e artigos assumidamente apaixonados.
Como naquele 2013 eu estava envolvido em outros trabalhos, o projeto de escrever uma peça inspirada na vida do boxeador repousou por quase dois anos na gaveta – só na gaveta, mas não na minha cabeça. A todo instante eu anotava alguma ideia para o texto e, sempre que tinha a possibilidade, falava sobre a vida do boxeador para os amigos. Assim como eu, eles jamais tinham ouvido falar sobre ele. E, assim como se deu comigo, todos ficavam invariavelmente obcecados pela história. Em meados de 2015, a Secretaria da Cultura do Governo do Estado lançou um Proac de Incentivo à Produção Literária – Dramaturgia. Reli tudo que havia colecionado sobre Emile Griffith e inscrevi no edital o projeto 12º Round. Ter sido um dos contemplados foi fator decisivo para que eu, finalmente, deixasse outros trabalhos de lado e passasse a me dedicar com mais afinco à pesquisa sobre a trajetória do boxeador.
Como as coincidências às vezes vêm ao nosso socorro, no segundo semestre de 2015 o jornalista britânico Donald McRae lançou A Man’s World: The Double Life of Emile Griffith”, excelente biografia do boxeador ainda sem tradução para o português. Em pouco mais de 400 páginas, o jornalista fez um retrato comovente e profundamente humano do jovem de voz fina e mãos macias que, antes de se tornar campeão mundial de boxe, trabalhava numa fábrica de chapéus femininos. Concluída a leitura do livro e de todo material sobre Griffith que coletei em diversas publicações disponíveis na internet, o espetáculo 12º Round estava pronto para nascer. E o texto nasceu no ringue, nasceu com o formato de uma luta de boxe: são doze cenas de três minutos de duração, seguidas por cenas curtas, de um minuto, que representam o intervalo entre os ringues. 12º é uma peça, mas é também uma luta. Uma luta de boxe e uma luta de um homem contra o preconceito e a discriminação.
A primeira leitura pública do espetáculo 12º Round foi realizada no dia 30 de setembro no Auditório da Biblioteca Alceu Amoroso Lima, pelos atores Clara Carvalho, Pedro Henrique Moutinho e Sérgio Mastropasqua. A direção de José Roberto Jardim utilizou projeções com imagens de arquivo de Griffith e uma emocionante trilha sonora de canções spirituals. 


terça-feira, julho 16, 2013

Um doutor na caatinga



A atual polêmica sobre a contratação de médicos para trabalhar em áreas remotas do País me fez lembrar da experiência de um jovem amigo que, logo após se formar em medicina aos 23 anos, aceitou, por vontade própria e sem nenhum incentivo governamental, o convite para clinicar em uma cidadezinha do Ceará onde, vencida uma série de perrengues iniciais, ele passaria a ser tratado como rei. O primeiro contratempo – haveria dezenas de outros na sequência -, se deu logo após sua chegada à minúscula rodoviária local. Carregando duas malas nas mãos, ele passou, sem saber que isso era uma ofensa grave na região, no meio de um casal de namorados. O homem entendeu aquilo como uma afronta e meteu-lhe um soco na cara que o fez beijar o chão tal qual o papa faz quando desembarca em um país novo. Ao se apresentar ao prefeito que o havia contratado, com um olho roxo e um hematoma que ocupava metade do rosto, agradeceu pelo comitê de boas-vindas e perguntou o que mais ele não deveria fazer para preservar a outra metade do rosto que ainda estava intacta.

Ao chegar ao hotel, percebeu que não havia chuveiro. No banheiro, apenas um cano enferrujado que saía da parede e terminava em uma ponta serrada por onde um filete de água não parava de escorrer. O dono do hotel explicou que ninguém ali precisava de chuveiro – nunca fazia menos de 30 graus. De tanto que ele insistiu, o dono concordou em parafusar um chuveiro velho na ponta do cano – o chuveiro, que nunca foi ligado à eletricidade, transmitia ao menos uma remota sensação de banho. Após mais algumas súplicas no balcãozinho que servia de recepção do hotel, conseguiu que viesse, de uma cidade vizinha, um aparelho de ar-condicionado barulhento como um helicóptero, mas que mandou bem por todas as noites dos seis meses que ele passaria na cidade.

Um dos primeiros pacientes que ele atendeu na manhã seguinte à sua chegada apresentava um quadro de faringite. Ele prescreveu duas cartelas de antibiótico, suficientes para uma semana de tratamento – e explicou que os comprimidos deveriam ser tomados de oito em oito hora. Pediu para que o homem voltasse dali a sete dias. Dois dias depois, o homem estava de volta. Como ele não tinha relógio, achou complicado aquele esquema de oito em oito horas. Tomou a primeira cartela em um dia e a segunda, no outro. Veio em busca de mais cinco cartelas para preencher uma semana de tratamento.

Com o tempo, ele fez amizade com o dono do mercadinho, que traficava para ele alguns vidros de azeitona – a única iguaria de um cardápio local composto, em todas as refeições, por arroz e frango com batatas. Minto: às vezes sem batatas. Não demorou muito para que os moradores locais, que até então tinham vivido sem médico, enxergassem nele uma espécie de autoridade, um jovem pajé, um forasteiro de pele muito clara que nada ficava a dever ao prefeito e ao padre. E então começaram os convites para os almoços dominicais. Que não podiam, de maneira alguma, ser recusados. Se ele dizia que era longe, vinham buscá-lo de carroça, se dizia que estava cansado, instalavam outra rede na varanda. O que ele esperava, na verdade, é que alguém lhe preparasse qualquer coisa que não fosse frango. Mas isso ele nunca conseguiu – o lugar era seco, paupérrimo, sem nenhum tipo de plantio. Os franguinhos que ciscavam na frente das casas de manhã já estariam na panela na hora do almoço.

Apesar do calor e do terreno poeirento, ele costumava correr um pouco no fim do expediente. E a cidade, quieta, observava aquela cena com um estranhamento que não diminuiu em nada ao longo dos meses. Uma garota da redondeza, de 19 anos e cabelos negros, caiu de amores por ele e chorou muito quando ele voltou à rodoviária em que havia apanhado seis meses atrás para pegar o ônibus com destino a Fortaleza – e de lá um avião para São Paulo.

Na noite em que me contou esta história, ele mostrou um álbum que a garota lhe dera de presente de despedida. Em uma série de folhas de papel sulfite, a jovem colou imagens de casais se beijando – na maioria, fotos de famosos que ela recortou das revistas. Angelina Jolie e Brad Pitt apareceram duas vezes em poses apaixonadas. Ao redor de cada foto, ela rabiscou um coração vermelho e, na última página, escreveu a mais original das dedicatórias que já li na vida: “O meu amor por você é igual a caatinga. Só aumenta”.

Ele nunca me disse se chegou a ficar com ela. Mas, por muitos anos, guardou o álbum com carinho em uma pasta preta, ao lado do passaporte, do título de eleitor e de algumas outras coisas muito, mas muito importantes mesmo.